SUMÁRIO

Os Direitos dos Remanescentes de Quilombos - Neusa Maria Endes de Gusmão
O caso Genny Gleizer - Precursor das Campanhas pelos Direitos Humanos no Brasil - Tulio Kahn
Uma Ordem Outra - Ferreira Gullar
As ONGs na Reconstrução da Sociedade Civil no Brasil - Ricardo Toledo Neder
O Padre - Luiz Carlos Merten
Ética Pedagógica na Universidade - Joaquim Parron Maria
Música no Rio de Janeiro e São Paulo entre a Proclamação da República e a Primeira Guerra Mundial - Regina Beatriz Quariguasy Schlochauer
Idéias & Fatos: 50 anos de Béla Bartók - Eddynio Rossetto
Focus: Ilê - Hosana Bruno
Quadrum: Arthur Bispo do Rosário - Nelson Aguilar
Poética: Traduções de Safo e Arquíloco - Antonio Medina Rodrigues
Teatro: Décio de Almeida Prado e o Papel do Teatro no Sistema da Cultura Brasileira - Paulo Eduardo Arantes
Livros: Glauber Rocha, Cahiers du Cinéma, Collection "Auteurs". Sylvie Pierre - Paulo Cunha
Discos: Ópera Rara: o compact disc, da Editora Vozes - Rosana Lanzelotte

 

O CASO GENNY GLEIZER

PRECURSOR DAS CAMPANHAS PELOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

Tulio Kahn

Neste momento em que volta à discussão pública a questão da reparação das vítimas do regime autoritário, o artigo procura recuperar a memória daquela que foi uma das primeiras vítimas da repressão politica no país, ainda durante a fase constitucional do governo Vargas.
Caso célebre na época, a história da jovem militante comunista, estrangeira e judia Genny Gleizer ajuda-nos a entendero inicio da indústria do anticomunismo no Brasil, o anti-semitismo latente da época e asformas encontradas pelo aparato policial para fugir ao controle da justiça e implantar um verdadeiro regime de arbitrio, apesar da restauração formal do "Estado de Direito", com a Constituição de 34. Não menos importante é a descoberta de um incipiente mas promissor movimento pelos direitos civis no Brasil de então, lutando pela defesa das minorias perseguidas pelo governo e forçando as autoridades a pronunciar-se publicamente, talvez pela primeira vez, diante das violações perpetradas pelo Estado.

A perseguição aos comunistas que ocorreu pouco antes e, principalmente, depois da fracassada tentativa de golpe em 1935 não é só mais um triste marco para a história da repressão no país. É também neste período que se manifestam as primeiras grandes campanhas de resistência contra os abusos aos direitos fundamentais dos prisioneiros políticos.

Como que antevendo o fechamento posterior do regime, durante o penodo do governo constitucional de Vargas (1934-37), os protestos contra os abusos do poder, antes tímidos e isolados, convertem-se em movimentos nacionais e de massa: a imprensa, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Congresso Nacional, personalidades e entidades civis nacionais e internacionais manifestam-se em diversos episódios contra as mortes, torturas e maus-tratos a que estavam submetidos os envolvidos - e não envolvidos - nas insurreições de novembro de 35. Esta mobilização em prol dos direitos violados pelo Estado foi o reflexo de uma mobilização política que abrangia amplos setores da sociedade de então.

O período que antecede aos levantes é marcado por uma intensa politização na sociedade, uma radicalização política entre grupos que se opunham frontalmente. Não havia espaço para os indecisos. Os movimentos não liberais - de direita e esquerda-ecoam no Brasil da década de 30, radicalizando as camadas populares urbanas, ávidas por mudanças políticas, como o demonstravam as revoluções de 30 e 32. As versões tupiniquins dos conflitos ideológicos faziam-se representar no Brasil à esquerda pela Aliança Nacional Libertadora e à direita pelos Integralistas. Várias circunstancias favoreciam o crescimento dos dois campos, entre elas a ascensão dos regimes não liberais na Europa, a imaturidade do novo sistema democrático do país, o desaparecimento dos velhos partidos políticos e a ausência de novos partidos nacionais. Havia uma espécie de vácuo na vida política e como a política abomina o vácuo, ele acabou preenchido pelos movimentos radicais de direita e esquerda. (Dulles, 1967)

Não é casual, portanto, que também os grandes protestos contra as arbitrariedades cometidas pelo Estado contra seus inimigos políticos tenham ocorrido nesta época. Movimentos como o Integralista ou o representado pela Aliança Nacional Libertadora, eram inovadores em termos políticos. As cam pan has, m anifestações, marchas e comércios de então, como ressaltou Pinheiro, modificaram a tradicional política das conversas entre cavalheiros, trazendo a política para as ruas (Pinheiro, 1992, p.274). No mesmo processo, a defesa dos direitos fundamentais começa a fazer parte da agenda dos partidos e organizações civis, transformando-se numa questão pública.

Assim como a prática da tortura já era velha conhecida de nossas polícias, manifestações pelos direitos dos prisioneiros já se faziam ouvir anteriormente, sendo inclusive objeto de discursos parlamentares de Rui Barbosa. Mas em 35 há uma mudança de qualidade: as campanhas são melhor organizadas e penetram mais a fundo na sociedade. Os maus tratos passam a ser mal vistos porque já não atingem somente os pobres, negros, vadios e desqualificados. Agora os alvos são também estudantes de classe média, oficiais militares, escritores e intelectuais, parlamentares e cidadãos brancos, bem nutridos e educados. As classes médias intelectualizadas, mais do que o proletariado, sentiamse atraídas pelo marxismo e, nos momentos de repressão ao comunismo, serão elas as principais atingidas.

A descrição das atividades desencadeadas para se contrapor a perseguição aos envolvidos na intentona comunista revela outro fator importante do sucesso da luta pelos direitos dos presos políticos - em contraste com o abandono sistemático dos presos comuns - que é o fator organizacional. Os partidos de esquerda colocaram suas "máquinas", ainda que pequenas e clandestinas, na campanha pela salvaguarda dos direitos de seus militantes: distribuição de volantes, pichação de muros, utilização da imprensa partidária e não partidária, organização de comícios e passeatas, elaboração de listas de apoio, envio de cartas e telegramas com protestos às autoridades, em suma, toda uma gama de atividades que exigem um "saber fazer", esforço e dinheiro, que os prisioneiros comuns não dispõem.

Assim, a mobilização geral da sociedade naquele período, o perfil dos violados (oriundos da classe média), a natureza do "crime" cometido (político) e a utilização do aparato organizacional e administrativo dos partidos, são peculiaridades que nos ajudam a entender a novidade e a força dos primeiros movimentos e manifestações pelos direitos humanos no Brasil, pouco antes e em seguida ao fracasso das jornadas de novembro.

 

Estudo de um caso de mobilização: a prisão de Genny Gleizer 

O primeiro episódio importante de reação da sociedade contra a repressão, ainda antes dos levantes de 23, 24 e 27 de novembro, envolve, sintomaticamente, uma estudante de classe média, estrangeira, judia e comunista, chamada Genny Gleizer.

Em 15 de julho de 1935, um grupo de jovens e estudantes paulistas encontrava-se reunido no Sindicato dos Empregados do Comércio no Palacete Santa Helena, onde funcionava o Centro Juvenilista, organizando a preparação de um futuro Congresso Nacional Juvenil Comunista. Como a Aliança Nacional Libertadora fora há pouco proibida e fechada pelo governo de Vargas dois dias antes, os comunistas, para mobilizar a juventude em favor da AN L, decidem fundar um organismo chamado órgão da Juventude Popular, Estudantil e Proletária, do qual fizeram parte, entre outros, o escritor Jorge Amado e Carlos Lacerda, futuro governador da Guanabara. Avisada do encontro para a preparação do Congresso da JPEP, a polícia política do governo paulista (o Departamento de Ordem Política e Social, DOPS) deu uma "batida" no local, prendendo vários elementos do grupo, entre eles a jovem militante Genny Gleizer, nascida em Bucareste, Bessarábia (Romênia), na época com 16 ou 17 anos de idade. A policia política do Estado, o temídoo Departamento de Ordem PolStica e Social, já vinha acompanhando de perto as atividades do Centro Juvenilista, do qual participavam Genny e outros jovens de esquerda.

Genny e a irmã Berta vieram para o Brasil com o pai, Motel Gleizer em agosto de 1933. Como tantos outros imigrantes, seu pai estabeleceu-se como pequeno comerciante no Rio de Janeiro. Um ano e meio após sua chegada ao Rio, quando trabalhava na Av. Rio Branco, no Restaurante Antártica, a jovem foge da casa do pai para São Paulo, onde se encontrava há aproximadamente 7 meses quando foi detida pela polícia.

Alegando razões de saúde para sua vinda a São Paulo, longe dos parentes, Genny morou primeiro junto a uma familia de italianos na Rua Barão de Ladário, n. 26, onde alugou um quarto simples através de um anúncio no jornal. Durante os seis primeiros meses na cidade ficou ali, mudando-se depois para outro quarto, desta vez na Rua Riachuelo, 59. Arrumar trabalho não foi fácil, mas, depois de 2 meses desempregada, conseguiu finalmente empregar-se como fiadeira numa fábrica no Tatuapé, na avenida Celso Garcia. Nesta fábrica ficará apenas 3 meses, empregando-se em seguida no escritório Heraldi, na rua São Bento 36. De suas atividades politicas no periodo pouco se sabe, exceto que se correspondia com militantes do partido em outros Estados, um deles possivelmente seu namorado, pelo teor de algumas cartas trocadas com um jovem militante comunista no Nordeste, Carlos Natal. Mas nada que indique uma participação mais ativa no movimento comunista e muito menos um papel-chave dentro dele, como quiseram Ihe atribuir tempos depois.

Quando Genny foi detida durante a blitz, portava uma garrucha tipo "galant", de 5 tiros e cabo de madrepérola, e escrevia um bilhete onde marcava encontro com outro companheiro, chamado "Arthur". Em sua casa, na Rua Riachuelo, a polícia encontrará mais tarde material do Partido Comunista e diversos livros de doutrina marxista, além de uma caderneta com anotações em iidiche. Suas ligações com a juventude comunista eram incontestáveis, apesar de suas declarações à polícia de que apenas guardava a arma e os livros para um amigo, o mesmo Arthur para quem escrevia o bilhete. Sua prisão era legal, dentro dos canones estreitos da época em que vigorava a Lei de Segurança Nacional, denominada pelos populares de Lei Monstro. Totalmente ilegal e inadequado, contudo, foi o tratamento dado à prisioneira durante os meses em que esteve detida pela polícia.

Depois de sua prisão no dia 15 de julho, Genny ficou detida por cerca de 10 dias no Gabinete de Investigação do DOPS e no dia 25 de julho os documentos informam sobre sua chegada ao presídio político do Paraíso, funcionando na instalações da antiga fábrica Maria Zélia. De lá foi transferida alguns dias depois para o Posto Policial de Jardim Chapadão, em Campinas, e posteriormente para a Cadeia Pública de Campinas. Localizada pela imprensa local em 19 de agosto na cela n º 15, as autoridades removeram-na às pressas para a prisão de Mogi-Mirim, onde esteve somente por um dia. passando então para uma cela em Arthur Nogueira. Para evitar que fosse novamente encontrada por jornalistas paulistas, Genny é transferida em 29 de agosto para a Central de Polícia do Rio de Janeiro, mas de lá retor| na ao Gabinete de Investigações do DOPS e mais uma vez, em 30 de agosto, ao Presídio do Paraíso. Finalmente pára na Cadela Pública de São Paulo, na Avenida Tiradentes. Tentando frustrar as ten- tativas de deesa a prisioneira é desiocada por 10 vezes, passando por 8 diferentes locais. A cada transferência diziam aela que iam colocá-la em liberdade.

Nenhum de seus conhecidos ou parentes a viu ou ouviu, durante cerca de um mês. Motel Gleizer, o pai, soube no Rio através do jornais, da prisão da filha em São Paulo. Era difícil de acreditar mas o nome e a fotografia não deixavam dúvidas. O pai em vão procurava explicações para o fato, uma vez que, insistia, não existia nenhum comunista em sua família. Talvez a situação especial em terra estranha ou circunstancias imperiosas tenham levado sua filha a adotar idéias extremistas, pelas quais jamais demonstrou simpatia, racionalizava o pai Motel (ou Max) Gleizer, em entrevista à imprensa.

Do Rio de Janeiro o pai tentava obter informações sobre o paradeiro da filha junto à pol~cia carioca, com o Ministro da Justiça ou ainda com o Presidente de São Paulo, mas ninguém sabia ou queria Ihe informar nada. Sem saber ao certo onde está a filha, pede a um advogado que impetre em seu favor um pedido de habeas-corpus. De início, pensou que a questão seria resolvida facilmente: pretendia encontrá-la e entregá-la ao juizado de menores, pois, segundo dizia, confiava nas autoridades brasileiras e estava certo de que numa instituição a filha rebelde receberia uma educação esmerada. A situação de Genny, contudo, complicava-se dia a dia.

A polícia paulista, consultada sobre o caso, responde inicialmente que Genny fora solta no mesmo dia de sua prisão, ocultando seu verdadeiro destino e invalidando o pedido de habeas-corpus. Além de procurar as autoridades, Motel Gleizer visitou também a redação de alguns jornais para contar sua história, publicada pelo Correio Paulista e no Diário de São Paulo. Alertada sobre o desaparecimento da jovem, a imprensa parte então em busca de informações sobre sua localização, procurando pelas prisões do Estado.

Quem primeiro a encontra na Cadeia Pública de Campinas em 19 de agosto é o repórter Danton Gomes, do Diário da Noite, que, num furo de reportagem, publica uma pequena entrevista com a prisioneira, que diz estar ali já há 15 dias e pede para que informe aos demais sobre sua localização. Contou também ao repórter que depois de sair do presídio do Paraíso esteve por algum tempo no Posto Policial do Chapadão, até o dia que a removeram para Campinas. Horas depois da curta entrevista, Genny é retirada de Campinas e levada às pressas para o Rio de Janeiro.

Por diversas vezes a polícia negará saber seu paradeiro, mesmo depois de ter sido vista pela imprensa: assim, pedindo informações sobre o caso ao Secretário de Segurança Pública no Rio de Janeiro em 26 de agosto, o embaixador da Romênia no Brasil receberá também a resposta de que Genny foi de fato presa mas posteriormente posta em liberdade, nada constando nas delegacias a seu respeito. Alguns dias mais tarde, em entrevista ao Correio Paulistano em 5 de setembro, o superintendente do DOPS alegou desconhecer o paradeiro da jovem estudante. Em sua opinião, ela estava se escondendo para que contra ela não se instalasse o processo que Ihe cabia. A polícia, dizia ele cinicamente, era a principal interessada na sua aparição, uma vez que havia um processo contra a já famosa jovem.

O caso desperta cada vez mais o interesse da opinião pública e impossibilitada, a certa altura, de continuar negando que a jovem está sob sua custódia, a polícia resolve mudar de procedimento, reconhecendo sua prisão, justificada, segundo alegavam agora, por tratar-se de uma perigosa agente comunista.

No mesmo dia 19 de agosto em que é entrevistada em Campinas, respondendo ao pedido de informação requisitado pelo Deputado Campos Vergal, o delegado do DOPS Eduardo Lousada Rocha, responsável pelo caso, vem a público prestar esclarecimentos sobre a prisioneira. Na versão oficial dos fatos, Genny é apresentada como uma "agitadora precoce, de grande inteligência e de notável cultura marxista". Era ela, segundo o DOPS, a cabeça da organ ização do Co n gresso e o el emento de l i gação entre os comunistas do Rio de Janeiro e São Paulo. Segundo o delegado Lousada Rocha, Genny chamara-lhe logo a atenção pela vivacidade de espírito e pelo conhecimento que revelava sobre táticas e tarefas do Partido. Para ele, não se tratava de uma jovem idealista mas sim de uma experiente militante que desenvolvia em São Paulo grande atividade comunista, "não limitando sua ação ao setor que se concentrava no 1º Congresso, mas estendendo-a ainda aos trabalhos diretamente ligados a sindicatos e fábricas, atividade esta que o Partido denomina trabalho de base".

Em outra entrevista ao Diário de São Paulo em 12 de setembro, o próprio Secretário da Segurança Pública de São Paulo, Leite de Barros, endossa a versão policial, afirmando que a perigosa agitadora teria vindo da Europa especialmente para organizar e tomar parte num congresso da juventude comunista do Brasil. Para o Secretário, Genny, valendo-se de suas condições especiais por ser mulher, moça e bonita, conseguia, em matéria de propaganda do extremismo, fazer o que agitadores mais velhos e experientes não conseguiam, pois que atraia um ambiente de simpatia para a causa da revolução social. No que parece ser uma invenção descarada por parte do DOPS ou da imprensa, o Diário de São Paulo de 17 de setembro diz que a polícia encontrou com Genny instruções enviadas pela III Internacional. O Secretário de Segurança Pública, Sr. Leite de Barros, endossa as informações em entrevista à Folha da Manhã no mesmo dia. acrescentando detalhes fantasiosos só comparáveis ao que posteriormente se faria no episódio do "Plano Cohen". Três meses antes da "intentona", Leite de Barros afirma que:

"nos documentos a que me referi, estava o seu plano de ação, qual fosse, o de infiltrar-se nos meios trabalhistas e estudantis para levar avante a revolução social. Esta deveria ser feita à noite. Seriam cortadas as ligações telefônicas e telegráficas, interrompidos os meios de comunicação e, com a cidade às escuras - pois seriam cortadas as ligações de luz - dar-se-ia o assalto aos quartéis, repartições públicas e à polícia, que estava interessada em desarticular o plano geral que se projetava".

Como se vê, a descrição do secretário é detalhada, para dar maior credibilidade à versão policial, que, para não cair em contradição, tratou de forjar um "Plano Gleizer". Para as autoridades policiais, a opinião pública, manipulada pela imprensa, estava transformando a prisão de uma comunista perigosa numa verdadeira "Odisséia".

Em entrevista publicada na A Platea, Genny narra sua "odisséia", onde afirma que numa noite, ainda no Gabinete de Investigações do DOPS, colocaram em sua cela uma mulher louca que a espancou barbaramente, sem que ninguém tomasse providências e que passou cinco noites dormindo no cimento úmído, com o único vestido que trajava quando presa. No Paraíso, foi submetida a vários e bárbaros interrogatórios - um dos quais durou das 3 horas da tarde às 2 horas da madrugada - durante os quais foi espancada. "Isto não é uma verdadeira Odisséia"?, pergunta em sua entrevista, referindo-se à expressão utilizada pelo delegado Lousada Rocha. E adiciona:

"todas estas coisas aconteceram sem que eu tivesse contato com o mundo. Sem que ninguém soubesse onde eu estava, às vezes, quando eu lia nos jornais: "onde está Genny Gleizer?", eu tinha a vontade de berrar alto, para que todo mundo ouvisse: "Estou aqui, senhores, nas mãos desta gente que nega que eu esteja presa".

Durante o tempo em que esteve detida, incomunicável, acusada de "subversão", Genny foi transferida por várias vezes, para diversas cidades, para dificultar sua localização precisa e a execução de possíveis habeas-corpus. Sofreu maus-tratos físicos e psicológicos. Tudo isso, obviamente, ao arrepio da lei, que previa um limite máximo de 48 horas para as detenções destinadas a investigações e proibia, como hoje, que se misturassem detidos maiores com menores de idade ou suspeitos com réus já com culpa formada. A entrevista com advogados de defesa eram impedidas ou realizadas na presença do diretor da cadeia e oficiais do gabinete do secretário de segurança, cerceando os depoimentos. Sua detenção só foi reconhecida pela polícia depois de localizada pela imprensa e justificada com as mais estapafúrdias invenções, corroboradas pela mais alta autoridade policial do Estado. Negaram-lhe, em suma, qualquer possibilidade de defesa.

Estas práticas, pelo que se pode inferir de outros protestos, não eram novas na pol~cia e nem restritas ao caso da jovem estrangeira. Para escapar da autoridade do judiciário, a polícia simplesmente negava a prisão de certas pessoas e removia os detidos para outros locais. Assim, por exemplo, já em janeiro de 1935 a Gazeta Popular de Santos denunciava que a polícia política estava negando a prisão de numerosas pessoas. Num protesto dirigido ao Presidente Vargas, uma entidade de direitos humanos da época, a Comissão Jundica e Popular de Inquérito, narrava os procedimentos ilegais: A Comissão, dizia a carta protesto:

"na defesa das liberdades do povo, vem impetrando numerosos habeas-corpus a vários trabalhadores manuais e intelectuais, vítimas do horror branco que se espalha por todo o país, constatando que tais presos estão submetidos a um regime de tortura e incomunicabilidade. O poder judiciário, requisitando informações da polícia, está, no entanto, na impossibilidade de deferir as ordens requeridas, segundo os despachos proferidos, visto que os delegados carcereiros dos presos, da ordem política e social, tem negado as inumeráveis prisões que vem efetuando nesta capital e em todo o interior. As buscas e apreensões não têm dado resultado legal, visto que a polícia remove os presos, de um para outro lado, dificultando as ações dos advogados. Esta Comissão denuncia publicamente este inominável atentado às liberdades e aos direitos do povo e envia seu protesto ao governo."

Genny, portanto, não estava recebendo tratamento especial. Meio ano antes de sua prisão, os membros da Associação Jurídica do Brasil e da Comissão Jurídica e Popular denunciavam as práticas da polícia política para iludir a atuação da defesa e do próprio poder judiciário.

Em setembro de 35, a pedido de Motel Gleizer, a Associação Jurídica do Brasil começa a acompanhar também o caso de Genny, no bojo das campanhas por sua libertação. Mais de um pedido de habeas-corpus foi impetrado em favor da jovem durante o tempo em que esteve presa. No último deles, o advogado impetrante denuncia explicitamente os escusos métodos da polícia política, solicitando ao juiz que determine uma diligência em procura da menor, sem aviso prévio, "para que nao seja remetida para lugar ignorado, como tem sido feito até agora".

A ação ilegal da polícia dificultava a batalha no terreno jurídico. Assim, sem descurar dos caminhos judiciais, os interessados em sua libertação perceberam que o caminho alternativo era a mobilização da sociedade.

 

A Campanha Pró-Libertação de Genny Gleizer

A situação de Genny prolongou-se por mais de três meses, durante os quais as forças de esquerda iniciaram um grande movimento pela sua libertação, com a "Campanha Pró-Liberdade de Genny Gleizer".

A campanha parece ter sido idealizada por Paulo Emílio Salles Gomes, na época com apenas 19 anos, também ele militante comunista e aluno da recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Uníversidade de São Paulo (USP). Junto a ele na elaboração do movimento estavam seus colegas de Faculdade Aldo Grasci e Rio Branco Paranhos. O jornal A Platea, órgão da ANL seria, de início, um dos principais incentivadores da Campanha e o diretório provisório do movimento formara-se com membros da própria diretoria do jornal.

Na visão da polícia, provavelmente correta, Paulo Emilio agia a mando e sob orientação direta de elementos da extinta ANL, como Brasil Gerson, com quem conversava freqüentemente na redação de A Platea. O DOPS acompanhou de perto todas as atividades do grupo, recebendo informes detalhados e ininterruptos do dia 27 de setembro até 28 de outubro. Nestes informes, o agente infiltrado contava que muitas das adesões e cartas que A P/a tea dizia receber em favor da causa eram na verdade apócrifas, escritas pela própria direção para provocar a indignação da opinião pública e assim propagar as idéias extremistas. Falsos ou não, o fato é que a campanha ganhou volume, a ponto de repercutir no Congresso.

Para as forças de esquerda, a libertação de Genny servia como um pretexto para a denúncia da repressão que se seguiu ao fechamento da Aliança Nacional Libertadora e se abatia sobre os opositores de Vargas. O próprio Paulo Emílio seria preso mais tarde como milhares de outros militantes, em 23 de dezembro de 1935.3 Inquerido na pohcia sobre sua participação no caso, Paulo Emílio declarou-se como iniciador do movimento nos meios juvenis, negando obviamente a orientação de aliancistas e comunistas.

Mas o envolvimento do Partido Comunista na exploração do caso é patente, comprovando, entre outras evidências, peta circular de "Castro", Secretário Político do Comite Regional do Partido Comunista em São Paulo, apreendida pela polícia.. Na circular aos militantes, Castro nota que a atenção das classes trabalhadoras e do povo em geral estava voltada para o caso de Genny e que naquele momento ela convertia-se num símbolo da luta pela democracia. A ocasião não poderia portanto ser perdida pelo partido que se colocava na vanguarda destas lutas. A diretiva do Partido era de que se aproveitasse a situação para iniciar uma ampla campanha pelas liberdades populares, fazendo-a girar em torno da libertação de Genny. Nesta campanha, até o mais indiferente dos indivíduos deveria tomar posição, utilizando para isso associações de toda a natureza. Fundamental era a mobilização dos sindicatos pois através deles e aproveitando suas possibilidades de atuação legal seria possível realizar grandes assemblélas de protestos nas fábricas: nestas assembléias e reuniões, recomendava a circular,

"devemos fazer com que a massa elabore e aprove moções de protesto; devemos fazer com que sejam enviados telegramas, abaixo-assinados, às Camaras, ao Governo, e ao mesmo tempo cópias para os jornais. Dessas reuniões, tirar comitês pró-libertação de Genny, com funções permanentes até que seja conseguida a satisfação de suas finalidades".

Os comitês seriam levados a todas as fábricas e fazendas dando à campanha um caráter de luta pelas liberdades populares. Onde houver um membro do Partido, continuam as instruções, "deve surgir um comitê pró-liberdade de Genny. Devemos aproveitar todas as iniciativas da própria massa, auxiliando-a a constituir nos bairros, quarteirões, municípios etc. estes comitês. Os organismos do partido devem se mobilizar para executar um intenso trabalho de agitação, realizar comícios, tirar volantes, manifestos, fazer inscrições murais etc., evitando neste trabalho todo e qualquer sectarismo"

É preciso lembrar que o poder de atuação do Partido era aumentado com a colaboração de uma série de órgãos e associações paralelas a ele direta ou indiretamente vinculado. Além dos vários sindicatos e dos órgãos de imprensa da esquerda, as iniciativas do partido refletiam e beneficiavam-se das atividades da Comissão Jurídica e Popular de Inquérito, Comitê de Luta Contra a Guerra Imperialista, a Reação ao Fascismo, Socorro Vermelho do Brasil, Comitê de Mulheres Trabalhadoras, Legião Cívica 5 de Julho, Federação da Juventude Comunista, Liga Comunista Internacionalista e diversas outras entidades culturais e recreativas de tendência comunista ou socialista. Vivia-se um momento de efervescência da sociedade civil e que só foi abortado com o golpe de 37. 0 fato é que a rede de solidariedade era extensa e, uma vez iniciada, a campanha contaminou a todos.

As primeiras reuniões do comitê, ainda tímidas, ocorreram no Centro do Professorado, onde Paulo Emílio Salles Gomes recebia adesões para a elaboração de uma Frente Unica, e solicitava a adesão de sociedades e sindicatos. Novas assembléias realizaram-se em seguida, no Sindicato dos Médicos e na sede do Sindicato dos Bancário, na Rua XV de Novembro.

Além da publicação de notícias nos jornais e do protesto em conferências e palestras que eram ministradas nos centros profissionais e estudantis, pichavam-se os muros da cidade, distribuíam-se manifestos pelas ruas, acompanhados por listas de adesões e contribuições financeiras para a campanha. Entre os aderentes figuravam os nomes do poeta Guilherme de Almeida, do deputado Alfredo Elis e do acadêmico Mário de Andrade, que fora convidado para fazer parte dos trabalhos da Comissão (mas que declinou do convite, devido a seus muitos afazeres, ainda que achasse que a campanha era uma das mais justas possíveis). Outras práticas de manifestação incluíam os pedidos de "um minuto de silêncio pela prisão de Genny", como durante a reunião no Sindicato dos Ferroviários, e inclusive o envio de cartas com ameaças.

A história triste da mocinha desprotegida nas mãos da polícia, que há apenas sete meses chegara a São Paulo, cuja mãe tinha se suicidado em virtude da extrema miséria em que viviam na Romênia, passando fome e frio, começou a circular e a despertar compaixões e paixões. A opinião pública sensibilizou-se com a situação da menor, órfã de mãe e cujo pai residia no Rio de Janeiro, sem possibilidade de defesa e ameaçada de desterro, por ser estrangeira.

Dezenas de sindicatos e de associações de trabalhadores, estudantes e intelectuais, do Brasil e do exterior, manifestaram-se pela libertação da estudante. Solidarizaram-se com a causa, remetendo cartas e telegramas ao governo ou ao Comitê pró Libertação, entre outros, a Juventude Feminina Brasileira, a Comissão Jurídica e Popular de Inquérito, os Ginasianos Tecelões de Tatuí, a Associação das Costureiras de Porto Alegre, o Socorro Vermelho, a Associação dos Trabalhadores de São Gonçalo, o Partido Socialista de Lins, o Cônsul da Romênia, deputados estaduais, federais e senadores de todo o país. Outros órgãos participaram mais ativamente da campanha, como o Centro do Professorado, a Associação Jurídica do Brasil, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino ou o Comitê Uníversitário pró Libertação de Genny Gleizer.

Todas as ocasiões tornaram-se pretextos para manifestações de solidariedade com a adolescente e protestos por sua libertação, como no ato convocado para o cemitério da consolação, por ocasião do enterro do militante Décio Pinto de Oliveira, morto nos conflitos na Praça da Sé em que Aliancistas travaram combates de rua contra os Integralistas. Ilustrativo do clima do período é o debate que teve lugar no Centro Acadêmico Xl de Agosto, a respeito da manifestação ou não da entidade sobre o ocorrido. O Jornal Correio de São Paulo de 18 de setembro assim reproduziu o diálogo travado entre as diversas facções:

- "Genny Gleizer, uma pobre inocente, menor de idade, passou os maiores horrores. E preciso ter compaixão dessa pobre alma sofredora!

- Qual o quê! Genny era comunista matriculada, e isso de dizer que ela era uma criança inofensiva são pieguices de sentimentalistas de contrabando!

- Nada disso - grita outro. - Ela é nada menos do que uma perigosa extremista, que veio a São Paulo especialmente para tomar parte num congresso comunista e pregar a convulsão social. Valia-se do fato de ser uma mulher bonita, para atrair os incautos...

- Mas o que se está tramando contra ela - intervém outro - é contra os nossos foros de nação civilizada, de país eminentemente católico. A sua expulsão é contrária às nossas leis penais e uma injúria à nossa organização jurídica".

Os estudantes de outros estados também lembravam-se de Genny em suas reivindicações. No Rio de Janeiro, em meio às passeatas e comícios, por vezes dissolvidos à bala, os estudantes gritavam " Nós queremos Genny Gleizer", como numa manifestação de solidariedade à companheira presa pela polícia paulista, realizada junto à Camara e ao Senado na capital da república. (Hélio Silva, 1969, p.208).

Os boletins distribuídos nas ruas, como o intitulado "Libertemos Genny Gleizer", encontrado pela polícia na Parada Inglesa, contavam seus sofrimentos nas mãos de seus algozes e apelavam ao povo paulista, povo que não poderia consentir, dizia o volante, que tais infamias continuassem a se perpetrar justamente no Estado onde, três anos antes, na revolução constitucionalista de 1932, se vertera sangue pela liberdade.

No início de setembro, o caso repercute no Congresso Nacional, provocando debates e um requerimento de informações na Câmara dos Deputados. O caso parece ter sido mencionado pela primeira vez em 7 de setembro pelo deputado estadual socialista Romeu de Campos Vergal, que, alertado por um telegrama enviado pelo diretorio do partido socialista de Lins, informava aos colegas que a jovem encontrava-se enclausurada na Cadeia Pública de São Paulo. Alguns dias depois, num requerimento assinado pelos deputados Abguar Bastos, Octavio da Silveira, Barros Cassal, Arthur Bernardes, Octavio Mangabeira, Bandeira Vaughan e outros, indagava-se ao Ministro da Justica quais as razões da prisao da jovem, os motivos por que permanecia detida, o local onde se encontrava e se havia ou nao um pedido de expulsão da menor no ministério. Os deputados da Uminoria", simpáticos a ALN, agiam como porta-vozes dos interesses da Aliança e davam repercussão ao caso.

O caso de Genny servia como "gancho" para chamar a atenção do público para as mais diversas questões correlatas, conclamando a população também a luta contra o fascismo e o imperialismo. Isto explica parcialmente o interesse da esquerda e da oposição pelo destinos da jovem. Como a historia vinha mobilizando a opinião pública naquele momento, Genny tornou-se um símbolo, o chamariz para discutir inúmeras outras questões da agenda da esquerda e uma peça na propaganda contra o governo. Inversamente, seu caso era lembrado sempre que se discutiam os outros temas, ampliando ainda mais sua repercussão.

 

O Declínio do Movimento e a Derrota Fina

Nesta altura dos acontecimentos, com a repercussão do caso, já começavam a circular os boatos de que - tal como fariam mais tarde com Olga e outros "extremistas" - o governo de Vargas pretendia deportá-la para a Romênia, na época sob o regime de Cuza, simpático ao nazismo.

Conforme o relato de Fernando de Morais em Olga,

"durante o processo de expulsão de Genny, a opinião pública testemunhara alguns gestos comoventes de solidariedade. Quando se anunciou, por exemplo, que se ela casasse com um brasileiro as leis a protegeriam da deportação, vários escritores e intelectuais se ofereceram como voluntários. Num comício pela libertação de Genny, no centro de São Paulo - onde tinha sido presa - o estudante Paulo Emílio Salles Gomes anunciou que sairia do palanque diretamente para o cartório, em busca de um juiz que of icializasse seu casamento com a garota. Chegou tarde. O jornalista Arthur Piccinini, que acompanhava o "caso Genny" para o diário A Platea, tomara-lhe a frente e havia solicitado ao Juízo de Paz do bairro da Sé, na capital paulista, a publicação dos proclamas para seu matrimônio" (Morais, 1994, p.160-161).

Arthur Piccinini, jornalista de A Platea, era membro da Aliança Nacional Libertadora e constava nos arquivos do DOPS como extremista comunista. Por conta de seu casamento com Genny - de quem só se separou oficialmente em 1946 - foi preso no final do ano com os demais pretensos comunistas, sendo absolvido pelo TSN somente em maio de 1938. Na prisão, para escapar de processo, Arthur dirá que seu casamento com Genny se deu por pura simpatia com a situação da moça e não para atender a circunstancias de ordem política.

Com efeito, Arthur e Genny pareciam se conhecer dos tempos em que Genny, recém-chegada a São Paulo, trabalhava na Rua São Bento, como funcionária da agência Heraldi. Encontraram-se pela primeira vez no Baile da Liga Lombarda, no decorrer do qual Arthur Piccinini convidou-a para um encontro, precisamente no Palacete Santa Helena, sede do Congresso da Juventude Proletária e Estudantil, onde Genny seria presa mais tarde. No momento de sua prisão, a jovem rascunhava um billhete para um certo Arthur, cujas evidências sugerem ser a mesma pessoa. Arthur Piccinini, de certo modo, devia sentir-se responsável pela prisão da moça e seu destino atribulado e o casamento seria uma tentativa de fazer algo para tirá-la da enrascada para a qual tinha contribuído.

O diário A Platea começara a divulgar, algumas semanas antes, que Arthur e Genny eram noivos, de forma a dar maior credulidade à história e comover ainda mais a sociedade. A polícia, que acompanhava de perto as atividades do Comitê pró Libertação de Genny Gleizer, obviamente não engoliu a estória. No relatório ao superintendente do DOPS de 11 de outubro, o espião infiltrado no movimento informa que os elementos de A Platea inventaram que ela era noiva de um rapaz, como última tentativa para libertá-la. Inventaram isso, continua ele, "com o fito de comover o sexo feminino e incitar os animos e manifestações, em sinal de protesto".

No dia do casamento, em 18 de outubro de 1935, no cartório de Jardim América, diversos jornais cobriram o ato, bastante concorrido. Todavia, o casamento com Arthur Othelo Piccinini feito por procuração não foi suficiente para colocá-la em liberdade, pois ocorreu tarde demais.

Uma semana antes da cerimônia de matrimônio, Genny já havia partido do país. O governo se antecipara à estratégia do matrimônio arranjado. Em 21 de agosto Getúlio Vargas e seu ministro da Justiça, Vicente Rao, assinavam seu decreto de expulsão.

Os jornais consultaram advogados para opinar sobre os efeitos jurídicos do enlace, mesmo com a deportação em curso. João Dante, entrevistado pelo Diário da Noite, opinou que o efeito era juridicamente nulo, uma vez que se dera posteriormente ao ato governamental de expulsão, que inclusive.já estava sendo executado, com a vítima em viajem para seu país de origem. Consultado pelo Diários Associados, o advogado Abraão Ribeiro arrematou que, se o estratagema do casamento simulado vingasse, "fácil seria aos extremistas nacionais importar, por via de casamentos por procuração, todas as mullheres extremistas de todas as Rússias".

Procurando dar uma "solução definitiva" ao problema de Genny, que começava a incomodar as autoridades, no dia 11 de outubro a perigosa prisioneira foi transportada secretamente para Santos, escoltada por 10 policiais e colocada numa lancha para ser levada a levada a bordo do navio francês Aurigny.

A tripulação do navio, alertada a respeito da carga que transportaria, entrou em greve, recusando-se a compactuar com o processo. Criado o impasse, Genny permaneceu na lancha por mais de 6 horas, sendo finalmente colocada a bordo de madrugada, quando a tripulação dormia.

No momento em que o Aurigny fez escala no porto de Recife, uma última manifestação em favor da menina é improvisada, ali mesmo no porto. Alguns jornalistas conseguem furar o bloqueio policial e entrevistam-se pela última vez com Genny, no Camarote 321, da 3ª. classe. Num rápido diálogo, a prisioneira, mostrando as mãos inchadas, conta a jornalistas de O Globo, A Manhã e Diário da Noite que fora violentada pela polícia paulista e que estava já a 15 horas sem comer.

Cerca de 40 dias antes do primeiro levante comunista em Natal, e talvez ciente de algum boato sobre os preparativos para as sublevações comunistas de novembro de 35, Genny desafia seus algozes, dizendo-lhes que " os senhores agora me maltratam, me espancam, me insultam, mas quando Luiz Carlos Prestes dirigir o Brasil, hão de pagar tudo isso! Eu sei onde fui bem tratada e onde me trataram como um cachorro". Por ironia, alguns meses depois Prestes e toda a cúpula do movimento comunista estarão fazendo o mesmo percurso pelas prisões do país e Sobral Pinto, advogado de defesa indicado pela OAB, apelando para a lei de proteção aos animais para reivindicar um tratamento mais digno aos prisioneiros...

Quando a sorte parecia finalmente tê-la abandonado, após uma viagem de 26 dias rumo à Romênia, o capitão do navio liberta-a num porto francês. E não só a deixa partir como Ihe fornece dinheiro e o endereço de um casal idoso em Paris, onde poderia arrumar casa e comida em troca de trabalho.

A expulsão do Brasil e o exílio na França, no final das contas, proporcionaram-lhe oportunidades que dificilmente teria aqui: numa carta enviada tempos depois a seu amigo brasileiro, o historiador Eduardo Maffei, Genny conta que, estudando à noite em uníversidades de três países, aprendeu a falar, ler e escrever olto idiomas e que já tinha obtido graus universitários em geronto-psicologia e arte.' Depois da adolescência turbulenta no Brasil e da vida de estudos e militancia da França, Rússia e Peru, Genny Gleizer mudou-se para os Estados Unidos, onde estudou contabilidade, direito e psicologia e onde vive até hoje, na cidade de Nova York, com o sobrenome do marido.

 

O Caso Genny: prenúncio do endurecimento do Governo Vargas

Anunciando o que depois ocorreria com Olga Prestes, Elise Berger e outros estrangeiros indesejáveis, Genny foi o primeiro dos famosos bodes expiatórios do período de lutas ideológicas dos anos 30, pois adequava-se ao perfil do "judeu bolchevista internacional", mito propagado pelos grupos de inspiração nazifascistas que cresciam no Brasil de então. Vargas e importantes elementos de seu governo não escondiam suas simpatias pelo regime hitlerista, já engajado em 1935 em campanhas de hostilidade aos judeus e aos comunistas. O anti-semitismo e a xenofobia em geral cresceram durante o episódio da intentona e durante sua repressão pois boa parte da intelectualidade de direita via os imigrantes de origem judaica, principalmente os oriundos da Europa oriental, como propagadores das idéias subversivas e internacionalistas. O judeu era identificado em certas instancias governamentais como um estrangeiro pouco assimilável ao meio ambiente que o cerca, anti-social e elemento perigoso à ordem pública por seu espírito revolucionário.

Genny não foi certamente a única ou mais sofrida vítima da polícia política. Dezenas de outros menos favorecidos provavelmente enfrentavam semelhantes ou piores situações. A Associação Jundica do Brasil, que atuava em casos de indivíduos atingidos pela Lei de Segurança Nacional, tratava na ocasião de casos similares, como o do também menor José Pedro de Souza, empregado do Sindicato dos Operários em Construção Civil de São Paulo, que se encontrava preso embora a polícia negasse sua detenção. O Socorro Vermelho, por sua vez, denunciava em volantes a situação de quatro jovens lituanos presos a mais de um ano na Cadeia Pública de São Paulo.

Entre os deportados judeus nos anos seguintes como subversivos estão, entre outros, Alexandre Waistein, César Zibemberg, Ejber Bajnermann, Gusmão Soler, Ida e Jayme Narowsky, Ida Sazan, João Gratz, Moyses Garbas, Moyses Kalinas, Rodolpho Lepski, Rubens Goldberg, Samuel Alexandre Klein e Wolf Feldmam.

Centenas de outros estrangeiros seriam deportados e milhares de brasileiros amargaram nas prisões da ditadura varguista. Outros não tiveram sequer esta oportunidade, sendo mortos nas sessões de tortura da polícia, como alguns dos líderes dos levantes de outubro de 35.

Genny teve a "sorte" de ser uma das primeiras detidas por tramar contra o governo em 35, sorte também por ser mulher, branca, de classe média, jovem, bonita e órfã, elementos que sensibilizavam a opinião pública. Contou com a atuação do pai e foi escolhida como símbolo de luta pelo Partido Comunista. Seus companheiros estavam em liberdade e podiam lutar por sua libertação. A indústria do anticomunismo ainda não entrara em funcionamento máximo. Mesmo assim, foi jogada de uma lado para outro, incomunicável, impedida de se defender e finalmente deportada.

Apesar da mobilização da sociedade e do trabalho partidário organizado, o movimento fracassou. Depois da tentativa de golpe comunista em Natal, Recife e no Rio de Janeiro em novembro de 35, as arbitrariedades se instauram como regra e torna-se muito mais diffcil se opor a elas. É difícil afirmar qual o posicionamento da opinião pública frente a estas novas violações. A ameaça do comunismo, alardeada pelo governo e pela imprensa, enfraquecia certamente possíveis laços de solidariedade com relação aos detidos, situação diversa da vivenciada por Genny, que fora presa antes da "intentona". Depois de novembro, as manifestações contra as violações restringem-se cada vez mais ao círculo dos grupos d i retamente envolvi dos, mais i sol ados do restan te da sociedade. A repressão policial tornara-se também mais intensa, inibindo as iniciativas que porventura ainda houvesse em defesa do Estado de Direito.

Mesmo assim, a história do período guardou a memória de um série de iniciativas para resguardar a integridade e dignidade dos que estavam sendo presos e torturados por razões políticas e o caso de Genny pode ser considerado como um dos movimentos precursores e mais bem organizados.

É espantoso notar que organizações da sociedade civil já naquela época faziam visitas a presídios, escreviam manifestos, telegrafavam às autoridades protestando contra as arbitrariedades, entravam com recursos na justiça em favor dos atingidos pela repressão. As iniciativas não eram ainda amplas o bastante para alcançar os criminosos comuns. Todavia, como resultado desta mobilização, as ações ilegai s da polícia vinham à tona e as autoridades, pressionadas pela imprensa e pela opinião pública, tiveram, talvez pela primeira vez, que dar alguma satisfação por seus atos. Mesmo que as respostas fossem forjadas, tinham que ser dadas, o que é um sintoma da capacidade de influência da emergente sociedade civil. A força destes incipientes movimentos pelos direitos civis sugerem o que poderia ter sido a sociedade brasileira se não tivesse sido sufocada por sucessivos períodos autoritários.

Calados pelo golpe em 37 e mais uma vez em 1964, os movimentos de defesa dos direitos civis tentam, ainda hoje, organizar-se para faze rvaler as promessas não cumpridas do velho liberalismo.

 

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